A indicação da Punção Liquórica e a interpretação do LCR na Sífilis

A indicação da Punção Liquórica e a interpretação do LCR na Sífilis, uma doença sexualmente transmissível causada pela bactéria Treponema pallidum, cujas manifestações clínicas apresentam-se em três fases distintas: primária (caracterizada pelo cancro duro em órgãos genitais), secundária (com lesões cutâneas e linfoadenomegalia) e terciária (com comprometimento neurológico e cardiovascular).

Além da transmissão sexual, essa infecção pode também ser transmitida verticalmente ou por transfusão sanguínea. Nos últimos anos, tem sido registrado um aumento no número de casos de sífilis. De acordo com o Boletim Epidemiológico de Sífilis, de 2019, do Ministério da Saúde, em 2018 a taxa de detecção de sífilis adquirida foi de 75,8 casos/100.000 habitantes. A incidência de sífilis congênita foi de 9/1.000 nascidos vivos com taxa de mortalidade de 8,2/100.000 nascidos vivos. Há um aumento crescente do número de casos, em todos os cenários desta infecção, mas principalmente entre mulheres negras e jovens, entre 20 e 29 anos. 

Uma das graves complicações da sífilis é a neurosífilis, que ocorre em cerca de 3,5% dos casos de sífilis.

Os sintomas e síndromes neurológicas variam de acordo com o tempo de infecção. Nos estágios mais precoces predominam as manifestações relacionadas à sífilis meningovascular, como a meningite, acidente vascular cerebral, lesão de nervos cranianos, incluindo nervo óptico, e mielopatia progressiva.

Na fase tardia, pode ocorrer a Paralisa Geral, caracterizada por demência e sintomas neuropsiquiátricos, ataxia, alterações pupilares (clássica pupila de Argyll-Robertson), e o Tabes Dorsalis, com marcha atáxica, sinal de Romberg e paraparesia.

A prevalência de neurosífilis nos EUA varia de 0,47 para 2,1 casos/100.00 habitantes e não é conhecida em nosso meio.  A coinfecção pelo vírus HIV aumenta em duas vezes o risco de desenvolvimento de neurosífilis. A neuroinvasão pelo Treponema pallidum ocorre em cerca de 40% dos casos de infecção por esta bactéria. Destes, 30% evoluem com infecção persistente e em 70% ocorre o clearance da bactéria do SNC.

Nos casos de infecção persistente, 20% terão infecção sintomática (Figura 1). Considerando-se a variedade de sinais e sintomas e a diversidade de apresentação evolutiva, bem como a disponibilidade de tratamento eficaz, faz-se necessário o diagnóstico o mais prontamente possível, para prevenção de sequelas neurológicas definitivas. 

O exame de LCR é imprescindível para o diagnóstico de neurossífilis. As indicações de punção lombar para coleta e análise de LCR no contexto da sífilis são: 

  1. a) suspeita de sífilis congênita, 
  2. b) presença de manifestações visuais ou neurológicas compatíveis com neurossífilis, 
  3. c) tratamento da sífilis que não resulta em negativação do VDRL, 
  4. d) pacientes com HIV positivo e com VDRL > 1/42, contagem baixa de CD4, ou sintomas neurológicos compatíveis. 

Apesar da grande importância do exame de LCR, a presente revisão indica que houve um avanço pequeno nos últimos dez anos em direção a um marcador efetivo, com grande sensibilidade e especificidade. Os métodos moleculares, embora com boa especificidade, não possuem boa sensibilidade, possivelmente refletindo a baixa quantidade de bactérias presentes no LCR em pacientes com neurossífilis.

Os biomarcadores inflamatórios, embora estejam de forma geral em concentração aumentada no LCR, não possuem boa especificidade, visto que podem também encontrar-se aumentados também em outros processos infecciosos e inflamatórios do SNC. 

Considerando a inexistência de um marcador único que seja suficientemente sensível e específico, o diagnóstico liquórico ainda se baseia em parâmetros indiretos e na identificação de anticorpos. A análise de LCR deve incluir os seguintes parâmetros: 

  1. a) citologia – o aumento da celularidade em casos suspeitos corrobora o diagnóstico de neurossífilis e corrobora decisões terapêuticas, 
  2. b) determinação da concentração de proteína – a presença de proteinorraquia – aumento de proteína > 45 mg/dL – em casos suspeitos, também pode contribuir para indicar a necessidade de tratamento, 
  3. c) avaliação da imunoprodução intratecal, incluindo a eletroforese de proteínas, que pode revelar aumento da fração gama; o índice de IgG, cujo aumento também pode ocorrer nesta condição e a pesquisa de bandas oligoclonais, que, na neurossífilis, estão frequentemente presentes no LCR e ausentes no soro. 

Os anticorpos específicos para diagnóstico da neurossífilis são os não-treponêmicos e os treponêmicos. Dos testes treponêmicos o VDRL é o mais importante. Apresenta alta especificidade, quando positivo é considerado confirmatório. Além disso, a monitorização do título do VDRL é bastante útil para a monitorização do tratamento.

Contudo, o VDRL no LCR apresenta baixa sensibilidade, de apenas 50%. Portanto, nos casos suspeitos, quando o VDRL é negativo, há necessidade de considerar os anticorpos treponêmicos e os demais dados do exame de LCR. Dos testes treponêmicos a imunofluorescência é o mais usado, havendo alguns estudos com o método de ELISA, com resultados ainda discrepantes.

Os testes treponêmicos são altamente sensíveis, embora haja relatos de resultados falso-negativos. É possível também a ocorrência de resultados falso-positivos, especialmente em casos de punção lombar traumática, com contaminação do LCR pelo sangue. Os testes treponêmicos, ao contrário do VDRL, não são úteis na monitorização terapêutica, visto que a positividade pode permanecer por longos períodos de tempo, mesmo em casos curados. Os valores de sensibilidade e especifidade para a neurossífilis precoce e tardia, de cada teste, estão mostrados na Tabela 1. 

Alguns algoritmos têm sido propostos com o objetivo de reunir todos os dados clínicos e laboratoriais, incrementando ao máximo a sensibilidade e especificidade diagnósticas. As Figuras 2 e 3 apresentam algoritmos diagnósticos usando dados liquóricos, em pacientes com e sem sintomas neurológicos, respectivamente. Em pacientes com infecção pelo HIV utiliza-se valor de corte de contagem de células maior, pois a própria infecção pelo HIV pode estar associada a ligeira pleocitose. 

Concluindo, a neurossífilis é uma condição com múltiplas apresentações clínicas e de difícil diagnóstico. O exame do LCR continua sendo o mais importante no diagnóstico desta entidade. Enquanto não há um biomarcador único suficientemente sensível e específico, para todas as fases da doença, devem ser analisados diversos parâmetros da análise liquórica a fim de aumentar ao máximo as chances de um diagnóstico preciso e precoce.  

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

  1. http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/boletim-epidemiologico-sifilis-2019
  2. MARRA, CHRISTINA M. NeurosyphilisContinuum (Minneapolis, Minn.) v. 21, p. 1714-28, 2015. 
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  5. HOBBS, E., VERA, J. H., MARKS, M., BARRITT, A. W., RIDHA, B. H., & LAWRENCE, D. Neurosyphilis in patients with HIV. Practical neurology, v. 18, p. 211–218, 2018.